sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Depoimentos: A sentença de morte que transformou minha vida

A Vida com AIDS uma Estrada sinuosa A vida é, na maior parte das vezes, uma estrada sinuosa...
Por­tar HIV já sig­ni­fi­cou ter ho­ra mar­ca­da pa­ra mor­rer, mas es­sa agen­da mu­dou… Pa­ra mim, a AIDS foi sen­tença de mor­te que trans­for­mou mi­nha vi­da!

Não mor­ri com ho­ra mar­ca­da.

Mui­tas pes­so­as não acre­di­tam que a mor­te te­nha uma da­ta, ao me­nos uma que se­ja co­nhe­ci­da. Mas se você foi in­fec­ta­do com o vírus da AIDS no início da epi­de­mia, pen­sou di­fe­ren­te­men­te. Aos 61 anos, vi­vi me­ta­de da vi­da com AIDS, mi­nha com­pa­nhei­ra cons­tan­te e pri­ma dis­tan­te, in­se­parável iden­ti­da­de que não per­mi­to me de­fi­nir, fa­to co­ti­di­a­no e si­tuação es­pe­ci­al que mu­dou mi­nha vi­da sob to­dos os as­pec­tos.

Em­bo­ra não hou­ves­se na épo­ca tes­tes pa­ra de­tec­tar a do­ença, creio que a con­traí em 1982. Ho­je é difícil ima­gi­nar a li­be­ração se­xu­al que to­mou con­ta dos gays na­que­le tem­po. Era o fim da opressão. Tínha­mos li­ber­da­de e afirmáva­mos is­so com se­xo.

Mas, de­pois de um en­con­tro com um fa­mo­so ator que ocul­ta­va sua ho­mos­se­xu­a­li­da­de, um enor­me he­ma­to­ma apa­re­ceu no meu braço. Em se­gui­da, fui hos­pi­ta­li­za­do com um pro­ble­ma san­guíneo sem ex­pli­cação apa­ren­te. Os médi­cos atur­di­dos pen­sa­ram mui­to so­bre o ca­so, per­gun­ta­ram se eu ti­nha be­bi­do gim com tôni­ca. Dis­se-lhes que era a be­bi­da do meu pai. Sem tan­tos ab­sur­dos, o pro­ble­ma também vi­nha ocor­ren­do com gays em No­va York. O ter­mo "pra­ga gay" es­ta­va no ar, mas nin­guém sa­bia o que era nem co­mo a pes­soa era in­fec­ta­da. A AIDS pa­re­cia mui­to ale­atória, ani­qui­lan­do es­tra­nhos e co­nhe­ci­dos; mas, você sem­pre se di­zia que a do­ença es­ta­va dis­tan­te. Então, de re­pen­te, ela já não es­ta­va mais dis­tan­te de mim, ab­so­lu­ta­men­te.

Dei­xei o hos­pi­tal cer­to de que ti­nha con­traído o vírus.

À me­di­da que a epi­de­mia se pro­pa­gou na déca­da de 80, to­dos os gays con­vi­ve­ram com a AIDS, in­fec­ta­dos ou não. Há 30 anos, os cen­tros de con­tro­le e pre­venção de do­enças re­por­ta­vam os pri­mei­ros ca­sos – um período ater­ro­ri­za­dor e de de­sam­pa­ro. As in­for­mações médi­cas au­men­ta­vam. Apren­de­mos mais so­bre o HIV e sua trans­missão pe­lo ato se­xu­al, mas tu­do con­ti­nu­a­va ne­bu­lo­so e res­tri­to.

Na­da que você sou­bes­se ou fi­zes­se im­por­ta­va. Não exis­ti­am tra­ta­men­tos.

Um res­fri­a­do era uma ameaça de coi­sa pi­or, ca­da ger­me era um pu­nhal apon­ta­do a seu sis­te­ma imu­nológi­co. Uma noi­te, um bom ami­go saiu fu­ri­o­so da mi­nha ca­sa por­que ser­vi por­co no jan­tar, pois to­dos sa­bi­am que car­ne de por­co po­de­ria matá-lo se você es­ti­ves­se com o vírus. Mes­mo de­pois de os tes­tes se tor­na­rem possíveis, mui­tos pre­fe­ri­am não sa­ber.

Quan­do o meu tes­te e o do meu par­cei­ro de­ram po­si­ti­vo, não nos sur­pre­en­de­mos. Já sabíamos.

Sen­tia-me acos­sa­do pe­la mor­te. Se­xo ago­ra po­dia sig­ni­fi­car a mor­te, não a li­ber­da­de. Mais e mais ami­gos ado­e­ci­am. Mui­tos mor­re­ram. E mui­tas ve­zes as mor­tes eram hor­ri­pi­lan­tes. Os ânco­ras da TV olha­vam pa­ra você to­da a noi­te e cal­ma­men­te anun­ci­a­vam a do­ença co­mo "sem­pre fa­tal". Aque­les que to­ma­vam pre­cauções ado­e­ci­am e mor­ri­am. Os que não o fa­zi­am também ado­e­ci­am e mor­ri­am. To­do mun­do es­ta­va mor­ren­do. Mi­nha mor­te era só uma questão de tem­po, e pro­va­vel­men­te num tem­po mui­to bre­ve.

A vi­da con­ti­nu­ou em meio a to­das aque­las mor­tes. Eu ti­nha um óti­mo tra­ba­lho no Con­gres­so. Meus co­le­gas eram gays in­fec­ta­dos, in­cluin­do meu che­fe. Con­versáva­mos mui­to so­bre a do­ença, a por­tas fe­cha­das no fim do dia.

En­quan­to is­so, o go­ver­no pa­ra o qual eu tra­ba­lha­va nos ig­no­ra­va. A so­ci­e­da­de ti­nha me­do de nós. Ha­via ru­mo­res de qua­ren­te­na e os jul­ga­men­tos mo­rais eram in­ter­mináveis. Tínha­mos ape­nas uns aos ou­tros.

So­zi­nhos, nos uni­mos pa­ra cui­dar uns dos ou­tros. Em al­gu­mas déca­das, uma mi­no­ria des­pre­za­da saiu da opressão e par­tiu pa­ra a re­sistência, a li­ber­tação, a de­vas­tação e, fi­nal­men­te, uma vi­da co­mu­nitária. E en­con­tra­mos es­sa co­mu­ni­da­de não em ba­res, mas em clíni­cas, hos­pi­tais e or­ga­ni­zações que cri­a­mos pa­ra tra­ta­men­to, in­for­mação e apoio; pa­ra jun­tos cho­rar­mos e lem­bra­mos. Não era um tra­ba­lho fe­liz, mas era um tra­ba­lho ne­cessário.

No fi­nal da déca­da de 90, meu no­me ain­da não ti­nha si­do evo­ca­do pe­la mor­te. Os remédi­os eram for­ne­ci­dos por um sis­te­ma de saúde forçado a is­so por ati­vis­tas fu­ri­o­sos. Eram me­di­ca­men­tos que ape­nas nos pro­me­ti­am mais tem­po pa­ra a des­co­ber­ta de dro­gas mais efi­ci­en­tes, tem­po pa­ra um pou­co mais de vi­da. Meu médi­co dis­se que a úni­ca razão pa­ra não to­mar o pri­mei­ro des­ses remédi­os, o AZT, era que eu te­ria de in­ge­ri-lo to­dos os di­as pa­ra sem­pre, o que, na épo­ca, não pa­re­cia um pro­ble­ma.

As­sim, to­mei-os to­dos, so­fri seus efei­tos co­la­te­rais e ini­ci­ei a fa­se de ten­ta­ti­vas e er­ros pa­ra vi­ver com AIDS. Um no­vo remédio po­dia re­tar­dar a des­truição do sis­te­ma imu­nológi­co, mas afe­ta­va o fíga­do e aca­ba­va subs­ti­tuído por ou­tro, que também co­lo­ca­va em ris­co al­gu­ma ou­tra função.

E as­sim por di­an­te.

Mas na­da dis­so era pro­mes­sa de um tem­po de vi­da mai­or. Mi­nha saúde diária e meus di­agnósti­cos di­zi­am que meu tem­po es­ta­va aca­ban­do. Vi mui­tos ami­gos mor­re­rem. Eu que­ria vi­ver meus últi­mos di­as de vi­da na mi­nha ama­da São Fran­cis­co.

Em 1994, nu­ma noi­te quen­te de ju­lho, na Virgínia Oci­den­tal, meu par­cei­ro e eu nos sen­ta­mos sob a mar­qui­se do Ho­tel Gre­en­bri­er com meu irmão e mi­nha cu­nha­da, que es­ta­vam em lua de mel. E, an­tes mes­mo de eu po­der pe­dir, eles se ofe­re­ce­ram pa­ra cui­dar de nós até a nos­sa mor­te. No ano se­guin­te, aban­do­nei meu em­pre­go e mi­nha am­bição; e com­prei uma ca­sa próxi­ma à mi­nha família, pa­ra fa­ci­li­tar a em­ba­raçosa ad­mi­nis­tração de nos­sa mor­te.

Então, tu­do mu­dou. Os ini­bi­do­res de pro­te­a­se tor­na­ram-se acessíveis.

Nas­ceu o "co­que­tel". Você não po­dia der­ro­tar a AIDS, mas po­dia lu­tar por um em­pa­te, tal­vez in­de­fi­ni­da­men­te. Por 15 anos, a mor­te sem­pre es­te­ve pre­sen­te. Pen­sa­va ne­la di­a­ri­a­men­te. Fi­ca­va im­pres­si­o­na­do com as pes­so­as que con­se­gui­am sair di­a­ri­a­men­te co­mo se fos­sem imu­nes a ela. E ago­ra eu pre­ci­sa­va me ajus­tar a uma vi­da que acre­di­tei já não ter a fren­te.

Foi uma das coi­sas mais difíceis e bem-vin­das que me acon­te­ceu.

Ain­da nos meus 40 anos, ti­ve que re­pen­sar tu­do, já que ia vi­ver. Meu pro­je­to fi­nan­cei­ro tor­nou-se in­viável. Ti­nha de pen­sar em tra­ba­lhar. Mi­nha re­lação com meu par­cei­ro te­ria que pas­sar por um exa­me por­que, em­bo­ra mui­ta coi­sa nos unis­se, ig­noráva­mos as di­fe­renças que se tor­na­ram ir­re­le­van­tes di­an­te da sa­gra­da obri­gação de cui­dar um do ou­tro no lei­to de mor­te. Ago­ra tínha­mos que en­ca­rar es­sas di­fe­renças. Am­bos so­bre­vi­ve­mos, mas "nós", não.

Con­ti­nu­ar vi­vo sig­ni­fi­cou ad­mi­nis­trar a saúde em tem­po in­te­gral. Os me­di­ca­men­tos fi­ca­ram in­sa­na­men­te com­ple­xos. E o abençoa­do co­que­tel apre­sen­ta­va efei­tos co­la­te­rais mal­di­tos, in­cluin­do do­enças car­di­o­vas­cu­la­res.

Cer­ta vez, brin­quei que mor­rer de um ata­que cardíaco aos 75 anos era a me­nor das mi­nhas pre­o­cu­pações. Na épo­ca es­ta­va com 51 anos, ti­nha ti­do dois de­les, e fui sub­me­ti­do a 4 an­gi­o­plas­ti­as. A in­gestão de remédi­os era terrível. Al­guns com­pri­mi­dos que ti­nham de ser to­ma­dos a ca­da 4, 6 ou 12 ho­ras com o estôma­go va­zio; ou­tros eram in­ge­ri­dos com ali­men­to. Mais e mais. Ca­da pes­soa com AIDS que eu co­nhe­ci­da tra­zia con­si­go um bip pa­ra lem­brá-la dos próxi­mos remédi­os que de­via to­mar no dia.

Es­sa mi­nha di­e­ta de me­di­ca­men­tos fi­cou tão con­tra­ditória que sim­ples­men­te se tor­nou im­possível se­guir o pro­gra­ma ade­qua­da­men­te. Os médi­cos ape­nas me re­cei­ta­vam mais e mais remédi­os. O dia não ti­nha o núme­ro de ho­ras su­fi­ci­en­te pa­ra tu­do. Era im­possível, em 24 ho­ras, to­mar to­da aque­la quan­ti­da­de de me­di­ca­men­tos; que de­vi­am ser in­ge­ri­dos com o estôma­go va­zio ou com o estôma­go cheio – e res­pei­tan­do a frequência da do­sa­gem re­co­men­da­da. Eu pre­ci­sa­ria ser dois pa­ra re­a­li­zar tal façanha.

Então, a al­ter­na­ti­va era es­co­lher que me­di­ca­men­tos to­mar, de acor­do com ca­da dia. E, até ho­je, ain­da en­gu­lo cer­ca de 25 com­pri­mi­dos di­a­ri­a­men­te.

Mas a mor­te não me in­qui­e­tou mais. Eu es­ta­va vi­vo e es­sa mi­nha com­pa­nhei­ra mortífe­ra fi­cou me­nos in­sis­ten­te. A AIDS e eu con­vi­ve­mos há qua­se 30 anos. Mi­nha re­lação com a do­ença é uma das mais du­ra­dou­ras, pois en­ri­que­ceu e ar­rui­nou mi­nha vi­da. Ela me rou­bou ami­gos e en­tes que­ri­dos e, com eles, as lem­branças do que tínha­mos e o re­po­sitório da mi­nha própria história. En­cer­rei uma car­rei­ra que ado­ra­va. Cus­tou-me um ca­sa­men­to. Mi­nha re­lação com o sis­te­ma de saúde nos EUA foi dis­pen­di­o­sa e exaus­ti­va. Sei que es­se é um pe­que­no preço a pa­gar pe­la vi­da.

O que ga­nhei foi pre­ci­o­so. Aci­ma de tu­do, a com­pa­nhia cons­tan­te da AIDS en­si­nou-me que vi­da sig­ni­fi­ca vi­ver, não en­ga­nar a mor­te. Com­ba­ter a do­ença é ne­cessário e lu­tar com a vi­da, ine­vitável. Ho­je acei­to su­as con­sequênci­as, se­jam elas quais fo­rem. Mi­nha en­fer­mi­da­de não me tor­nou uma pes­soa es­pe­ci­al e mi­nha so­bre­vivência não me tor­nou uma pes­soa co­ra­jo­sa.

Na­que­le dia que sai do hos­pi­tal sa­ben­do que es­ta­va com AIDS, me fo­ram da­dos gran­des pre­sen­tes: a con­vicção de que to­dos ten­ta­mos nos equi­li­brar no mais de­li­ca­do dos fi­os; e a cer­te­za de que a úni­ca ma­nei­ra de vi­ver é aman­do a vi­da.

Não mor­ri com ho­ra mar­ca­da. E te­nho apren­di­do a vi­ver a vi­da sem mar­car ho­ra.

Fonte: soropositivo

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